
O cemitério de Serrana ficava no alto de uma colina que o povo batizara de “ Boa Vista”. Daquele outeiro era possível ver toda a cidade, e, simbolicamente, poder-se-ia dizer que dali os mortos vigiavam os vivos. Era um cemitério antigo e havia sepulturas que datavam de 1800 e pouco. O coveiro Eusébio informava que não se sabia os nomes dos que ali jaziam, e os registros daqueles primeiros anos haviam mofado num armário antigo ou sido devorados pelas traças.. Ele, como seu colega Afonso, não se lembrava de que nos 40 anos que ali trabalhavam, viesse alguém visitar aqueles túmulos. Como eram perpétuos, não se podia desmanchá-los para que outros corpos fossem sepultados. Agora, não passavam de enigmáticos marcos, porque, com a passagem dos anos, nada mais restava nos seus interiores senão o pó; mas nem isto poderia ser verificado. Despertava curiosidade o túmulo que ficava na entrada, à direita do cemitério. Nada havia sido gravado na pedra; nenhum nome e nenhuma data. Anônimo. Por qual razão fora construído desta maneira? Era um mistério.
Diz-se que a morte nivela a todos. Mentira! Naquele cemitério, como em outros das cidades vizinhas, os mortos das famílias abastadas eram sepultados em túmulos artisticamente construídos. O material usado era do melhor mármore e argolas de um metal nobre adornavam aquelas moradas onde não faltavam inscrições extraídas da Bíblia e as datas de nascimento, marcadas por uma estrela, e as da morte, por uma cruz. Além deste cuidado, um Anjo com asas abertas, encimava o túmulo e sugeria que estava pronto para levar o morto para o céu. Eram pequenas capelas, com portas de ferro e cadeados. Naqueles anos o cemitério ainda era considerado um campo santo, e os ladrões não violavam os túmulos para tirar dentes de ouro da boca dos mortos, como ficou costumeiro nos tristes anos de fim do século XX.
Os coveiros, Eusébio e Afonso, haviam se acostumado com o trabalho. Na hora do almoço não mais lavavam as mãos, mesmo que estivessem abrindo uma cova e jogado os ossos de uma cova vencida no ossuário comum. Tornaram-se tão íntimos com a morte que não mais a temiam, e muito menos, experimentavam algum sentimento quando “plantavam” – era a gíria que usavam – uma criança, um jovem ou um velho. Suas fisionomias eram máscaras inexpressivas, enquanto olhavam os parentes do morto e colocavam as grossas cordas para fazer descer o caixão na cova de sete palmos ou empurrá-lo para dentro da gaveta de um túmulo. Se o morto era de família abastada, recebiam uma gorjeta pelo cuidado com que tratavam o caixão. Depois que estavam sozinhos completavam o serviço jogando, vigorosamente, pás de terra e cal sobre o caixão , e , rindo, galhofavam um para o outro : “Vai irmão ! Deus ou o Diabo te esperam do outro lado, mas fique aí plantado. A terra é boa e a cal vai te comer mais depressa.”
Mas a cal só era usada para os defuntos cuja família davam um agrado aos coveiros. Os indigentes e os mendigos eram cobertos apenas pela terra. Afonso e Eusébio haviam reservado as duas últimas horas da tarde para os mortos indigentes que vinham do Hospital “Dom Felício Roxo”, conduzidos, a toda pressa, no coche fúnebre do preto Malachias. Parecia que ele fazia questão de alarmar a cidade quando vinha do hospital, com os seus quatro cavalos fogosos, que disparavam sob o seu chicote pela avenida da Água Limpa, passavam velozmente pela rua do Divino, circundavam o jardim e subiam a rua do cemitério. Malachias, não se sabe se, de caso pensado ou por desleixo, não amarrava direito o caixão no fundo do carro fúnebre e o morto, na sua última viagem, ia aos trancos e barrancos, com o caixão pulando para o espanto dos serranenses.
O relógio da Matriz já batera as cinco horas e o Malachias ainda não chegara ao cemitério. Isto incomodou os coveiros que gostavam de sair pontualmente às seis horas. Já haviam aberto uma cova para um mendigo e fumavam um cigarrinho enquanto esperavam o último serviço da tarde. Naquele dia estavam exaustos, pois há mais de uma semana preparavam o cemitério para o dia de Finados que seria no dia seguinte. Túmulos haviam sido caiados; flores e árvores devidamente podadas ; enfim, o cemitério parecia um jardim. Quando menos esperavam, o coche do Malachias apontou no portão de entrada e rapidamente ganhou a rua principal do cemitério em direção aos coveiros.
- Eu pensei que Você não viesse hoje! Disse Eusébio.
- Foi o doutor Jeová que me atrasou, Eusébio. Hoje eu tou trazendo pra vocês o “Pé de Chinelo”, aquele mendigo que dormia na estação e que foi encontrado morto nesta manhã. O médico não queria liberar o corpo sem primeiro saber qual era a causa do passamento. Depois de conversar com o Dr. Ulysses resolveu dar o laudo e eu li que foi o coração que matou o pobre coitado.
- Ta bão ! Vamos logo Afonso. Malachias, você trouxe o lençol para enrolar o corpo ?
- Ele já está enroladinho, e, como das outras vezes, o caixão vai voltar. Lá no hospital tem mais uns indigentes que vão precisar dele quando “baterem as botas”
Em menos de meia hora os coveiros já haviam sepultado o “Pé de Chinelo”.Com dois pedaços de sarrafo improvisaram uma cruz e sobre a mesma escreveram o número 33, que passou a ser, no livro de registros, o número da cova do mendigo. Enquanto trabalhavam, trocaram idéias sobre o morto. Ninguém tivera a curiosidade de perguntar-lhe pelo nome. Por causa de um chinelo velho que arrastava, deram-lhe aquele apelido que virou nome. Fora despachado no trem de Ponte Nova com passagem até Serrana. Havia desembarcado há mais de três anos. Sua idade era indefinida e vivia, de porta em porta, nas horas do almoço e do jantar, com uma cuia na mão, pedindo “Pelo amor de Deus”, um prato de comida. Ninguém lhe negava o que comer. Em Serrana somente o Caburé, jardineiro da Praça 28 de Setembro, não gostava dele. “Pé de Chinelo” tinha o costume de todas as tardes, antes da Ave-Maria, roubar uma rosa do Jardim e levá-la até à imagem de Nossa Senhora das Graças e deposita-la junto aos seus pés. Em seguida, de joelhos, rezava num velho terço, os mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era sua fé. Pe. Solindo apreciava o mendigo e quando passava ao seu lado dava-lhe um carinhoso abraço. Depois do terço, “Pé de Chinelo” saia da Matriz, rindo e falando sozinho: “. Hoje, eu falei com a minha Mãe. Ela me ouviu.” e tomava o rumo da estação da Leopoldina Railway onde dormia, num canto, envolto em sacos de linhagem. Apesar da miséria em que vivia, da sua solidão, mantinha um sorriso de quase alegria e seus olhos verdes exprimiam um conformismo que era mais expressão de uma grande paz na alma. Ninguém o temia, e as crianças adoravam ouvir suas histórias quando ele se assentava num dos bancos do jardim. Eram histórias de fadas, princesas e cavaleiros. Dizia, e as crianças acreditavam que havia vivido naqueles tempos e fizera parte da corte do Rei Arthur na lendária cidade de Camelot. Descrevia como era a vida na corte e que seu nome verdadeiro era Sir Gawain. Acrescentava, com entusiasmo, que fizera parte dos cavaleiros que buscaram o Santo Cálice – o Santo Graal – onde estava recolhido o sangue que Cristo derramara da cruz. Como se acovardou em acompanhar seus pares recebeu, de um monge, uma maldição.
Ele foi condenado a vagar pelo mundo, sem morrer, e condenado a permanecer três anos em cada cidade até que Nossa Senhora, a Rosa Mística, o perdoasse, e só então encontraria a paz e morreria.
Quando as crianças contavam aos pais aquela história eles riam e diziam “O Pé de Chinelo está caducando. Ele deve ter lido a história do Rei Arthur e seus Cavaleiros da Távola Redonda, e , agora, na sua fantasia doentia a confunde com a sua vida. Já ouvimos dizer que ele é um doido manso que fugiu do Hospício de Barbacena.” Era isto que se dizia daquele mendigo.
Os hospício
coveiros olharam para o céu que mostrava nuvens escuras anunciando uma chuva forte.Terminaram o serviço batendo, com força, as pás sobre a terra para que uma possível enxurrada não abrisse buracos na cova. Malachias, Eusébio e Afonso deixaram o cemitério às pressas, pois a tempestade que estava se armando pelos lados da Serra da Ventania era certeira.
Sem encomendação, sem caixão e sem uma flor sequer, o mendigo, cujo nome ninguém sabia, foi sepultado, naquele 1 de novembro de 1942, dia de Todos os Santos, véspera do Finados, na cova número 33
Por volta das oito horas da noite o céu de Serrana escureceu, e uma chuva torrencial, acompanhada de ventos fortes e de raios que caiam aqui e ali, deixou a cidade mergulhada na escuridão depois que um raio atingiu o transformador da Companhia de Força e Luz. Em cada casa, velas e lampiões foram acesos; e orações saíram de bocas temerosas pedindo a Santo Antônio que acalmasse a fúria dos elementos. Quando era alta madrugada a tempestade amainou, mas a cidade continuou mergulhada nas trevas até que o dia amanhecesse. Era Finados. Receando os danos que a chuva teria causado, os dois coveiros dirigiram-se mais cedo para o cemitério. Às oito horas começariam as visitas aos mortos e esperava-se que centenas de pessoas fossem levar as flores da saudade aos túmulos de pais, irmãos, esposos, parentes e amigos. Eusébio e Afonso temiam, sobretudo, que as enxurradas houvessem removido a terra nas covas rasas dos indigentes sepultados nos últimos dias. Logo que abriram o pesado portão do campo-santo foram direto olhar a cova onde haviam sepultado “Pé de Chinelo”. Estupefatos não acreditavam no que os seus olhos observavam. A enxurrada não havia passado sobre aquela cova rasa e junto à cruz improvisada nascera, durante a noite, uma planta que já havia crescido uns dez centímetros. Primeiro, acharam que alguém fizera uma brincadeira no dia anterior e que a planta estava simplesmente fincada na terra e que a um leve puxão se desprenderia. Tentaram isto. Surpresos ficaram porque a plantinha mostrava que estava enraizada e
não fincada, como pensaram. Perguntavam –se :
- O que isto significa ? Que planta é esta que brotou durante a noite?
Eusébio tomou a iniciativa de ir até o Jardim da Praça e chamar o Caburé para dar uma olhada naquele fenômeno. Não contariam, por enquanto, a ninguém. Era hora de abrir o portão do cemitério para as visitas de Finados. Um grupo de pessoas já estava à espera do lado de fora. Eusébio abriu o portão e recomendou para que não pisassem sobre os túmulos e sempre caminhassem nas ruas internas. Dito isto foi saindo em direção ao Jardim para chamar o Caburé. Caburé veio logo e dirigiu-se à cova 33. Tirou um pito do bolso e, agachado, foi examinando a curiosa plantinha. Tocou-a, cuidadosamente, com os dedos e afirmou que era um tipo de roseira. A presença do Caburé chamou a atenção de alguns visitantes que se agruparam em torno da cova. Falastrão que era, Caburé não guardou segredo e perguntou se alguém sabia de algum tipo de roseira que havia nascido e crescido da noite para o dia ? Ninguém sabia. A notícia espalhou-se incontinente e mais e mais pessoas foram se juntando em torno da cova. Os coveiros, temerosos que alguém pisasse naquela plantinha ou afundasse os sapatos na terra , resolveram construir, às pressas, um cercado em torno da cova. De tarde, toda Serrana sabia do misterioso fenômeno que acontecera com o nascimento de uma roseira na sepultura do “Pé de Chinelo”. O pároco, o juiz de direito, o delegado, o prefeito e os vereadores haviam subido até o Cemitério “São João Batista” para inspecionarem , “in loco” , o fenômeno. Se curiosos haviam subido, estupefatos e com algum sentimento de culpa haviam descido para suas casas. Por iniciativa do delegado resolveu-se que dois praças iriam vigiar aquela cova durante aquela noite e as seguintes. O que mais poderia acontecer? Vagarosa e inexplicavelmente a roseira continuava a crescer apoiada no eixo da cruz de sarrafo. Sem autorização do padre, algumas beatas começaram a rezar junto à cova rasa e ensaiavam um murmúrio: “São Pé de Chinelo, rogai por nós!” A crendice popular, frente ao mistério e ao inexplicável, estava canonizando o mendigo que, em vida, só fora ouvido pelas crianças. No décimo dia, veio, da Escola Superior de Agronomia de Viçosa, um botânico para estudar o fenômeno. Ele confirmou que era uma roseira e ninguém colocou em dúvida a classificação que o professor Warwick Volf Rosenstraten fez da roseira, pois era um roseirista reconhecido em todo mundo. Tratava-se, sem dúvida alguma, de uma R. spinosissima, natural da Escócia e que produzia uma flor branca ou amarela , dependendo do terreno onde era cultivada. Caburé, que acompanhava a explicação do professor, ficou mais espantado porque informou que em Serrana, em nenhum jardim, havia alguém cultivado aquela espécie. O professor Warwick voltou para Viçosa sem poder explicar porque ela nascera naquele lugar e crescia tão rapidamente.
O mistério entrou no seu décimo oitavo dia, e, naquele dia, uma surpresa e um espanto a mais vieram se juntar e deixar mais desassossegados os serranenses. Uma rosa branca havia desabrochado e estava apoiada no centro da cruz. O fato trouxe mais crentes ao cercado da cova e entre orações e pedidos de graças, alguém lembrou que “Pé de Chinelo” era um fiel do terço e que levava, todas as tardes, uma rosa à imagem de Nossa Senhora.
Um estranho à cidade, onde todo mundo se conhecia, se juntou à considerável multidão. Havia chegado pelo trem Expresso, possivelmente do Rio de Janeiro, e especulava-se que fora visitar o túmulo de algum parente morto, fora do Dia de Finados. Era um homem alto, rigorosamente trajado de preto, dos seus 50 anos, que revelava no olhar e no andar uma autoridade peculiar. Ouviu os comentários dos crentes e como se esperasse, foi interrogado por alguém :
- O senhor, que não é daqui. O que acha disto tudo? Quem era o “Pé de Chinelo”? Demorando um pouco a responder, enquanto olhava, profundamente, os circunstantes, o estranho respondeu:
- Para vocês eu gostaria de esclarecer algumas coisas. Primeiro, ele não era um pé de chinelo. Na época em que o Rei Arthur, da Inglaterra, constituiu a sua Távola Redonda e sagrou os seus cavaleiros, era privilégio do cavaleiro oferecer uma rosa à sua Rainha e Àquela que é chamada de Rainha da Rosa Mística, a Mãe de Jesus. O cerimonial era bonito e inspirador. Mostrando que estava abaixo da Rainha dos Céus, a rainha depositava, em seguida, as rosas que lhe haviam sido ofertadas, aos pés da Senhora. Os cavaleiros que cumpriam esta bela e suave obrigação da Cavalaria ficaram conhecidos como Cavaleiros da Rosa e da Cruz. Hoje, contemplando esta linda rosa branca apoiada nesta cruz,e baseado nos meus estudos esotéricos, eu só posso deduzir que aquele que está aqui sepultado não é um santo. Era um cavaleiro que viajou muitos séculos sem encontrar na morte o descanso desejado. Cumpria uma pena que lhe foi imposta. Aqui, em Serrana, ele alcançou, finalmente, o perdão da sua Senhora e do seu Filho. Era um Cavaleiro da Rosa e da Cruz. “
Após aquela explicação reinou um profundo e grande silêncio entre as pessoas que o ouviam. Imediatamente, os circundantes abriram uma fileira e o estranho foi se afastando daquele grupo, sem a ninguém olhar e despedir, até desaparecer ao cruzar o portão do campo santo. Alguns populares tentaram ir atrás daquele estranho personagem e saíram,às pressas, à sua procura, pois desejavam fazer-lhe muitas perguntas. Na rua, olharam para todos os lados, mas não mais o avistaram. Até hoje, passados mais de sessenta anos, os velhos contam aos jovens esta estranha história. Alguns acreditam, outros, não!
Uma última surpresa estava reservada aos serranenses no ano 2.000. Quando passou o tempo legal de permanência do corpo na terra, e estima-se que pouco resta e os ossos são destinados ao ossuário comum, a cova de número 33 foi aberta para receber outro corpo. Nada foi encontrado! Nenhum osso, nenhum fio de cabelo, nada, absolutamente nada, que indicasse que ali estivera sepultado alguém. Com um misto de respeito e temor o coveiro cobriu de terra aquela cova rosa e tornou a fincar uma cruz de madeira com o número 33. Ela não receberia nenhum corpo enquanto existisse aquele cemitério em Serrana. O novo coveiro, o Eusebinho, filho de Eusébio, ficou a olhar aquela cova vazia e pensou que o número 33 correspondia à idade de Jesus Cristo, o Único Ressuscitado entre os mortos, ou será quê ?… Não quis completar o que conjecturava. O sino da Matriz batia as 6 horas da tarde e o sol já desaparecia nos altos da Serra de São Geraldo. Eusebinho podia vê-lo na sua variação de cores que dava ao entardecer um colorido todo especial e projetava a sombra de um cruzeiro, que existia na entrada do cemitério,sobre alguns túmulos. Era hora de deixar seu trabalho. Da cidade não vinha mais o ruído costumeiro dos automóveis e nem os apitos das usinas de açúcar anunciando a mudança de turnos. Serrana preparava-se para a noite que chegava e o repouso que prometia do trabalho do dia. Como fazia todas as tardes, ao fechar o pesado e imponente portão, ele fez o sinal da cruz, olhou mais uma vez para o interior do campo santo e disse: “ Descansem em Paz.! “
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Fonte do texto e Imagem
http://ribalmeida33.wordpress.com/2010/05/09/o-mendigo-a-rosa-e-a-cruz-um-conto-para-o-final-de-semana/