Escutatória [1]
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso
de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer
aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas
acho que ninguém vai se interessar.
Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que...
Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma. Filosofia é um monte
de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas.
Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o
Alberto Caeiro:
Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso
também que haja silêncio dentro da alma.
Daí a dificuldade: A gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem
logo dar um palpite melhor... Sem misturar o que ele diz com aquilo
que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno
de descansada consideração... E precisasse ser complementado por
aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e
sutil de nossa arrogância e vaidade. No fundo, somos os mais
bonitos... Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os
Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua
experiência com os índios: Reunidos os participantes, ninguém fala
[2]. Há um longo, longo silêncio. Vejam a semelhança... Os
pianistas, por exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano,
ficam assentados em silêncio...
Abrindo vazios de silêncio... Expulsando todas as idéias estranhas.
Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial.
Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala,
novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito,
pois o outro falou os seus pensamentos... Pensamentos que ele julgava
essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o
outro falou.
Se eu falar logo a seguir... São duas as possibilidades. Primeira:
Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que
você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria
falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não
tivesse falado. Segunda: Ouvi o que você falou. Mas, isso que você
falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para
mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que
uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: Estou ponderando
cuidadosamente tudo aquilo que você falou.
E, assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro.
Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a
gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência... E, se referia a algo que se
ouve nos interstícios das palavras... No lugar onde não há
palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral
submersa.
No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos
todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos
saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia... Que de tão
linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: A beleza que se ouve no silêncio.
Daí a importância de saber ouvir os outros: A beleza mora lá
também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se
juntam num contraponto! por Rubem Alves
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